terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O 3D digital e a expectativa em torno de Avatar

Os comentários de cinema desta semana foram dominados pelas notícias do assombro causado por Avatar de James Cameron. Os críticos parecem unânimes em exaltar o filme, com um cuidado particular de frisar que não se trata apenas da tecnologia 3D, mas que a história do filme é muito empolgante, uma narrativa muito bem estruturada. Um feito que James Cameron já havia conseguido com Titanic (1997). Num momento em que a tecnologia digital causava muito mais frisson que agora (já amortecidos que estamos diante do bombardeio de imagens digitais), Cameron integrou os efeitos visuais à narrativa. Pode-se até não gostar de Titanic – questão de preferências pessoais sobre a qual não quero me deter -, mas há de se reconhecer que em nenhum momento o filme parece ter sido feito para o efeito visual; ao contrário, o efeito visual está em função da narrativa, da necessidade de concretizar visualmente as situações dramáticas roteirizadas.

Confesso que fiquei muito impressionada com o trailer 3D de Avatar. Era muito nítida a diferença da imagem do filme de Cameron em relação aos outros trailers e ao próprio filme a que fui assistir. A minha sensação em tão pouco tempo (o trailer deve durar uns 2 minutos) é de que a tridimensionalidade mais impressionante é a da construção para dentro da tela – embora, lógico, houvesse, no trailer, muitos objetos e personagens que avançavam em direção à platéia. Penso agora que talvez tenha me sentido como os primeiros espectadores de cinema – há um relato de que no filme Repas de bebe (1895), em que Louis Lumière filmou seu irmão Auguste e sua esposa alimentando o bebê, os espectadores ficaram tão assombrados com o realismo e detalhe da movimentação dos galhos e folhas das árvores em segundo plano quanto com a própria ação registrada. Essa forma de utilizar o 3D, sim, me impressionou, e até empolgou, bem mais que o avançar de personagens e objetos sobre o público. Ampliar a tela plana para dentro tanto quanto para fora parece-me um caminho possível, não apenas um modismo. O trailer de Avatar me fez pensar que talvez seja possível me acostumar com esta visualidade, mais que isso, com esta nova experiência espacial no cinema.

Assisti até o momento a três filmes em 3D digital: Coraline e o mundo secreto, Up – altas aventuras e Tá chovendo hambúrguer. A respeito dos três, posso dizer que foi bem comedido o uso do 3D – não há exageros na projeção para fora da tela. O que acho ótimo, pois, apesar de toda empolgação com o 3D do Avatar, sou daquelas pessoas que gostam de cinema, não de demonstração de computador. Desagradam-me, até me irritam, os filmes feitos apenas para exploração da técnica. Reconheço a necessidade disso para o desenvolvimento de algo novo – afinal, o início do cinema foi também esta experimentação, na base da tentativa e erro e da observação do que dava certo em relação ao público e do que oferecia novas possibilidades e poderia ser incorporado à nova linguagem -, mas prefiro os filmes nos quais os efeitos e a tecnologia estão em função de algo e não de si mesmos.


Coraline


Gosto muito da visualidade e da animação do filme de Henry Selick, embora a história não consiga me envolver – a menina é adolescente americana demais para meu gosto. A abertura, sim, é encantadora; trilha, animação, objetos que saem da tela... tudo contribui para que o espectador entre neste universo mágico da história, da animação stop motion, da imersão proposta pelo 3D.

Sim, sou consumidora compulsiva de animação de todo tipo e nacionalidade, desde criança quando não perdíamos sequer uma matinê Disney. Como sou a terceira de quatro irmãos, e tivemos um pai que, possivelmente, gostava mais que os filhos de Quadrinhos e Animação, me tornei espectadora de cinema antes mesmo de entender o que era. Não me lembro do primeiro filme a que assisti, é como se o cinema sempre tenha estado em minha vida, desde sempre.

Não que seja um incômodo enquanto se está assistindo ao filme, mas me ressinto no Coraline de o stop motion parecer computação. Não sei se a tecnologia 3D se sobressai tanto que perturba a percepção de que são bonecos sendo movimentados tão fluidamente ou se a tecnologia 3D na filmagem, na finalização e/ou projeção altera a imagem o bastante a ponto de apagar os traços da técnica de animação de bonecos. O que é uma grande lástima! Acredito que a grande magia do stop motion seja se deixar perceber como uma técnica que movimenta objetos inanimados, sujeitos às leis da gravidade, ao espaço que também habitamos (mas que não permite que objetos se movimentem sozinhos, que ganhem vida). Mas este não é um “problema” só do Coraline. Tive alunos que acreditavam piamente que o A noiva cadáver (2005), de Tim Burton, era pura computação. A excelência na criação de mecanismos de movimentação, de expressão facial, de filmagem e na técnica de animação dos bonecos tem caminhado para um fotorealismo que, paradoxalmente, obscurece essa mesma excelência técnica. Tudo parece digital e o digital anda banalizado.


Up

Surpreendentemente, para mim, das três animações em 3D a que assisti, Up me pareceu a que menos explora (para o bem ou para o mal) a tecnologia. Lá pelo meio do filme dá até para esquecer que estamos assistindo a um filme em 3D – não apenas por causa da narrativa, mas por que parece que a imagem não tem mesmo o tempo todo uma construção perceptível do 3D. Não chega sequer a ser um problema, afinal, a Pixar prima pela narrativa aliada à tecnologia. A história de Up é bem contada e encantadora o bastante para prender o espectador.

Um dos melhores momentos do humor do velhinho é de uma cena que aparece já no trailer do filme. Quando acaba de "decolar" e ele está feliz dentro de casa, ouve alguém bater à porta. É o escoteiro. Diante de uma criança apavorada na varanda e que pede para entrar, ele é categórico: Não! E fecha a porta.







Tá chovendo hambúrguer


Eu assisti ao Tá chovendo hambúrguer por puro acaso – fiquei presa no shopping numa tarde de tempestade em Belo Horizonte e ia começar uma sessão daí a meia hora. É um filme bastante esquecível, dispensável em termos narrativos e tecnológicos. A história caberia num curta-metragem muito bem, o design dos bonecos é muito pouco atrativo e, confesso, nem me lembro do 3D do filme. Este filme me lembra as discussões do meu orientador, Heitor Capuzzo, numa disciplina da pós, quando ele criticava justamente a visão obtusa atual de que tudo deve ser feito em animação 3D digital (como se houvesse uma evolução no cinema pela qual toda técnica anterior é extinta e se torna obsoleta diante de uma nova). A construção de personagens, não só no cinema, mas também na literatura e no teatro, permite que sejam pensados como seres complexos ou superficiais, os quais recebem os nomes, bastante apropriados para nossa discussão, de personagens redondos ou planos. Deve-se pensar na técnica de animação a ser utilizada também em função da construção dramatúrgica da personagem. Em Tá chovendo hambúrguer vejo a ilustração do problema de fazer em 3D, isto é, tridimensionalmente, personagens que não têm mais que uma dimensão, planas. Há uma incongruência fundamental entre a dimensão visual e a dramatúrgica. Nem o mais impressionante 3D daria profundidade a esta animação. Bem... este não é o único problema do filme, mas talvez em 2D fosse mais apropriado.

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Diante destas minhas três experiências com os filmes 3D, só resta esperar para ver Avatar. Só para ser a voz dissonante, antes mesmo de ver o filme: o 3D do trailer me impressionou, mas não os seres digitais, os Na´vis. Tenho problemas com este tipo de criação no cinema - Acho que JaJa Binks me traumatizou mais do que pensava.

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Sobre o problema da legendagem – isto é, o porquê temos que sofrer assistindo aos filmes 3D digital dublados, leia post do UOL Cinema de 17/03/2009.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Anima Mundi 2009 - Michel Ocelot

Infelizmente não tive a oportunidade de assitir ao Papo Animado com Michel Ocelot no dia 17/07 no Rio de Janeiro. Coisas de Anima Mundi, que começa a venda de ingressos para esses encontros uma semana antes do início do Festival, deixando de fora aqueles que vêm de outros estados. De qualquer forma o trabalho de Michel Ocelot é um velho conhecido e pude assistir à sessão com seus curtas, já disponíveis em DVD, mas ainda sem lançamento no Brasil.

O curta “Les 3 inventeurs” (França – 1980) foi o primeiro curta de Ocelot, fato realmente impressionante, devido a qualidade da animação e ao alto grau de dificuldade da técnica escolhida. Ele animou com papel rendado, daqueles que se utiliza para enfeitar pratos de bolo e doces. A delicadeza do papel adequa-se à história narrada de uma família de inventores incompreendida por sua comunidade. No you tube um pequeno trecho dessa animação está disponível, mas a qualidade do vídeo não faz jus à animação. Abaixo algumas imagens:


Michel Ocelot, de formação publicitária, não tem receio de arriscar. Com domínio na animação de recortes e de sombras ele não hesitou ao enveredar-se na computação gráfica desenvolvendo histórias bem contadas nessa nova tecnologia, a exemplo de seu “Azur e Asmar” (2006). Seus longas são conhecidos em todo o mundo. Sua infância na Guiné o influenciou a criar o personagem Kirikou (1998 e 2005), conquistando fãs mundo a fora. Fato comprovado pelas dublagens da animação em diversos idiomas. Ele chegou ainda a animar a canção XXX para um clipe de Björk.

Em suas próprias palavras "O uso do 3D proporciona muitas coisas boas, mas sua fraqueza é justamente o poder que ele tem: pode-se imitar tudo. Nas técnicas em 2D o espectador entende de imediado o que é proposto: que aquilo é uma brincadeira onde ele é convidado a entrar, há um pacto com a simplicidade." Segundo informação do blog do Anima Mundi 2009 ,para os próximos trabalhos Ocelot pretende voltar ao 2D utilizando das novas tecnologias.

Animador diversificado Ocelot é um dos poucos que pode se dar ao luxo, hoje em dia, de dizer que vive de animação. Sua estabilidade financeira lhe permite fazer os filmes que gosta, com liberdade artística, para deleite do público. Aguarda-se ansiosamente um retorno de Ocelot às técnicas tradicionais ou mesmo experimentais que o consagraram.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Anima Mundi 2009 – Curtas Experimentais

Em sua 16º edição o Festival Anima Mundi surpreendeu pelo experimentalismo dos curtas em tempos de massificação do digital. Nesses meus 9 anos de Festival destaco nessa edição de 2009 três momentos que dividirei em postagens separadas: curtas experimentais, Michel Ocelot e o longa-metragem “Sita sings the blues”.
Nesses anos que acompanho e participo do Anima Mundi no Rio de Janeiro (em 2004 tive 2 filmes no festival: “Tequila” no Anima Web e “Navio Negreiro” no Animação em Curso) comecei a perceber que o digital avançava com tal força que parecia que as pessoas deixaram de refletir sobre as animações que realizavam e criavam efeitos especiais chamando-os de filmes.
Foi uma grata surpresa perceber que na edição 2009 a maioria dos filmes, mesmo que feitos em computação gráfica, apresentavam uma visão de mundo diferente e procuravam utilizar o digital de uma forma mais experimental e até ousada. Mesmo que o fechamento da história, um roteiro bem amarrado, em alguns casos ainda deixem a desejar.
Em praticamente 2 dias consegui ver 48 curtas e 1 longa. Vários filmes destacaram-se e me surpreenderam durante o Festival, mas por diferentes motivos. Destaco aqui aqueles cujo experimentalismo me chamaram mais a atenção:

MUTO, de Blu (Itália)
Ganhador do prêmio de melhor animação, júri profissional Anima Mundi (RJ).
Muto é uma animação realizada nos muros das cidades de Buenos Aires e de Baden. Através de grafites registrados quadro-a-quadro, as estranhas formas realizadas pelo artista Blu ganham vida. O tempo muda, o sol muda e com ele a luz, pessoas passam como se nada estivesse acontecendo. Somente quando as imagens produzidas são editadas é que a animação pode acontecer, como se estivesse em um mundo paralelo à nossa realidade. Na cegueira do cotidiano Blu estaria apenas realizando mais um grafite, mas através do “olho mágico” da câmera sua arte se faz. O tremor da câmera, a mudança da luz e outros inconvenientes perdem sua força para a animação. Essa relação entre a concretude do muro, estrutura estanque, e o inusitado movimento dos desenhos resgatam uma magia quase perdida no universo da animação. A magia de “dar vida” ao inanimado, como se fosse possível ver a alma das coisas. Por mais bizarros que os desenhos sejam, o encanto da forma e da técnica superam qualquer expectativa. Blu chega a utilizar o chão além da parede, rompendo até mesmo com os limites convencionais que do grafite. É bom lembrar que animações assim dão muito trabalho para serem realizadas, mas seu resultado continua insuperável.
Para complementar Muto é lançado na íntegra em licença creative commons, ou seja, todos podem baixá-lo, exibi-lo e copiá-lo desde que seja para finalidades não comerciais. Confira abaixo essa impressionante animação e visite o site de Blu para conhecer mais sobre seu trabalho.

http://www.blublu.org/sito/video/muto.htm

NO CORRAS TANTO, de César Díaz Meléndez (Espanha)
A beleza da técnica de animação em areia consagrada pelo animador húngaro Férenc Cakó ganha novo fôlego no impressionante trabalho de César Díaz Meléndez. Com uma música caliente as formas vão se dissolvendo e recriando-se na areia. A interação com a música impressiona pelo timing preciso e os desenhos elaborados que se movem e se fundem ao ritmo da alegre música.
A utilização do espaço na animação é algo que sempre me impressionou, especialmente em processos mais artesanais e esse é um ponto marcante na animação “No corras tanto”. Transbordar os limites, recriar o espaço e com ele abrir as portas para um mundo próprio da animação. Mundo este onde tudo é possível, onde as leis dos homens é constantemente subvertida, onde os sonhos e as formas mais improváveis tornam-se possíveis.
Nesse mundo todo peculiar o mais interessante é que aquilo que se realiza quadro-a-quadro só poderá ser visto através de um dispositivo que potencializa o olhar do espectador, fazendo-o ver aquilo que a olho nu seria imperceptível. Os desenhos se formam e desaparecem, sendo recriados a cada instante. A maleabilidade do material e sua efemeridade associam-se em harmonia no filme de Meléndez. O uso de areia colorida, a suavidade no jogo de luz e sombra e as tonalidades conseguidas impressionam. Confira a animação "No corras tanto" abaixo e em seguida seu making of (que apesar de interessante não apresenta a transformação quadro-a-quadro de seus desnehos na areia):





MON CHINOIS, de Cédric Villain (França)
Ganhador do prêmio de melhor animação, júri popular Anima Mundi (RJ).
Este é um filme encantador que por sua simplicidade conquista o público. Fazendo uso de todos os clichês que o ocidente possui sobre os chineses, a forma adequa-se ao conteúdo. Através de uma animação limitada 2D realizada no computador, a comicidade ingênua é aspecto marcante. Passados como slides, os estereótipos dos chineses são apresentados com diferentes materiais interagindo com a animação, como por exemplo a mão do animador e até um limão. Este filme foi realizado em 2008, época das Olimpíadas de Beijing, como participante do 12º Défidéfous (http://www.fousdanim.org/defis/), um concurso francês de animação com temas determinados. Nessa edição “as sombras chinesas” eram o asunto a ser animado. MON CHINOIS foi inspirado em uma sátira aos chineses cantada por Eric Idle, do grupo inglês Monty Python, na década de 1970.
Do mesmo animador, o filme PORTRAITS RATÉS À SAINTE HÉLÈNE, utiliza a mesma técnica de MON CHINOIS, mas dessa vez o caráter didático e histórico da animação dão o tom.
Levanta-se a questão sobre a verdadeira imagem de Napoleão, que foi retratado de diferentes formas pelos artistas da época e que morreu antes do advento da fotografia. A animação é precisa e caracteriza-se pelo aspecto infográfico com que apresenta a informação. A comicidade também presente diverte e informa sobre os absurdos das situações humanas. Ambos os filmes estão disponíveis para visualização e download sob licença creative commons. Confira no site do animador essas animações entre outros trabalhos:

http://www.cedric-villain.info

ENGEL ZU FUß, de Jakob Schuh e Sachka Unseld (Alemanha)
Esta animação alemã encanta não só pelo tema como impressiona pelo uso da computação gráfica com características de stop-motion, ou seja, o volume e a textura dos bonecos parecem palpáveis. O design dos personagens e a direção de arte estão bem relacionados nessa história de um anjo feminino (mesmo que os anjos não tenham sexo) que caiu do céu porque suas asas são muito pequenas. Meio desastrada ela se mete em confusões ao tentar de todas as formas voltar para o Céu, mas descobrirá entre os homens que somente a verdadeira generosidade pode levá-la de volta. Infelizmente não há link disponível para esse filme.

LASKA, de Michał Socha (Polônia)
Neste filme polonês é a composição que se destaca. O uso criativo dos espaços utilizando apenas as cores vermelho, preto e branco surpreende ao criar perspectiva, volumes e sombras inusitadas. Tudo a serviço desse mundo estranho em que os seres e as formas possuem um comportamento que se assemelha ao dos humanos. Com personagens feitos de formas básicas e borrões com textura de tinta, essa animação realizada em computação gráfica 2D e 3D apresenta de forma estranha os rituais de encontro e acasalamento desses seres que representam o feminino e o masculino. Veja o site e confira seu trailer:

http://www.thechickfilm.com/en/


ARC, de Ferenc Cakó (Hungria)
Ao deixar de lado a técnica de animação em areia que o consagrou, o animador húngaro Ferenc Cakó faz uso da massinha para expressar questões mais profundas e intrigantes sobre a condição humana. Ao criar uma sociedade decadente em que a promessa de um belo rosto move seus inexpressivos habitantes sem face ele ironiza a eterna busca humana pela felicidade através da beleza. Após passar por burocráticos processos para conseguir o tão desejado rosto os habitantes sentem-se enganados chegando a depor violentamente a estrutura administrativa vigente. Chegam ao criar uma sociedade colaborativa e descobrem a alegria de ajudar o outro, mas até quando. Como toda animação do leste europeu as possibilidades de interpretação são diversas e questões ainda mais profundas podem ser levantadas. A massa de modelar que permite ser modelada por si mesma faz com que a escolha deste material seja imprecindível para a história a ser narrada. A mesma animação não teria a mesma força se fosse contada com areia. Mesmo que o filme não esteja disponível online confira o site desse importante animador:

http://www.cakostudio.hu/

A adequação do material a ser animado ao filme deve ser observada e, na verdade, esta é uma característica marcante dos filmes aqui apresentados. É como se a história não pudesse ser contada de outra maneira a não ser com a técnica escolhida. Essa união entre forma e narrativa pode garantir o sucesso do filme. Afinal, não é qualquer história que pode ser bem contada com qualquer técnica.

Observação sobre os três curtas brasileiros que vi: é impressionante como no Brasil ainda tenta-se compensar a falta de animação dos filmes com narração. É como se os animadores não acreditassem no poder narrativo da imagem que concebem e preferissem garantir a compreensão do público através das falas óbvias. O que há de errado em fazer o público pensar? Viva a tradição do leste europeu e seus filmes silenciosos.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Meu nome é Wells e eu estou aqui para recrutar vocês!

Meu nome é Wells e eu estou aqui para recrutar vocês, para fazermos, juntos, uma dieta à base de leite. Assim, nós seremos fortes o suficiente para mudar o mundo.

Desde a primeira notícia sobre a produção de Milk fiquei ansioso para ver o filme por duas razões: seria mais um longa-metragem de Gus Van Sant, um dos diretores que mais admiro na atualidade, e seria um filme sobre Harvey Milk, uma figura emblemática do movimento gay norte-americano.

Com os trailers vistos pela internet fiquei ainda mais ansioso, mas o filme estreou em Belo Horizonte na sexta-feira de carnaval e eu já havia comprado uma passagem para a minha pequena cidade natal, que não é São Francisco, mas é surpreendentemente gay friendly. Então, antes de ver o filme, assisti à merecida premiação de Sean Penn como melhor ator de 2008 segundo a Academia de Hollywood. E seu discurso me emocionou.

Na quarta-feira de cinzas, ao meio-dia, eu estava de volta a Belo Horizonte. Deixei minha mala em casa e fui tomar o meu copo de leite na primeira sessão do cinema Usina.

Se me perguntarem se vi o Gus Van Sant, direi que sua discrição me faz gostar ainda mais dele. Milk é um filme absolutamente bem feito, tudo nele é perfeito, mas não tem uma marca de diretor. Gus Van Sant entendeu o quão importante era a história que iria contar, o personagem que iria retratar, e abriu mão de fazer um exercício de estilo em prol de um mundo melhor. Sabemos que a arte engajada também pode ser genial na forma e Eisenstein é uma prova disso. Mas, talvez por humildade Gus Van Sant não tenha se arriscado. Talvez seja por lucidez, afinal, seu país (e o mundo) passa por um momento extremamente delicado e ele percebeu que um Harvey Milk em primeiro plano pode ser mais necessário que um diretor-estrela.


O "Milk" de Van Sant (ou seria mais adequado dizer o "Milk" de Dustin Lance Black ou ainda de Sean Penn?) é perfeito, pois é humano, às vezes negligente, às vezes oportunista, sempre vaidoso, mas tão corajoso, tão generoso, tão perspicaz que convenceu Hollywood e espero que tenha convencido você também. Porque os quatro, Gus Van Sant, Dustin Lance Black, Sean Penn e Harvey Milk, fizeram algo do que podem se orgulhar. E você?

Tomemos, juntos, esse copo de leite para termos força para mudar o mundo.



Em tempo, minha pequena e gay friendly cidade natal é Piumhi, quem sabe você possa encontrar um Scott Smith por lá? Como não há lá um metrô, ele pode estar por toda parte.

Revolutionary Road

Foi apenas um sonho (Revolutionary Road – EUA – 2008), de Sam Mendes.


Injustiças sempre acontecem no Oscar, mas o que mais me surpreende é que um filme bom como “Revolutionary Road” tenha sido tão negligenciado, não sendo valorizado nem pela crítica, nem pelo público. Na tentativa de entender o descaso encontrei o artigo de Willing Davidson Great Book, Bad Movie - How Hollywood ruins novels”. Não por acaso a foto que ilustrava o artigo era exatamente do filme “Revolutionary Road”.

Muitos acreditam na frase-feita de que “o livro SEMPRE é melhor do que o filme”. Eu mesma pensava assim, até que através dos argumentos de minha amiga Érika Savernini aprendi a perceber que mesmo que o filme seja baseado no livro eles são produtos diferentes (um literário e outro audiovisual) e por isso não podem ser comparados da mesma maneira. Sei que isso é difícil de se conseguir, especialmente quando se está muito envolvido com o livro, mas o distanciamento se faz necessário. Em seu artigo Davidson argumenta que o filme não sustenta o envolvimento que o autor cria entre o leitor e o livro, chegando a afirmar que uma grande obra literária foi mal adaptada, rechançando o filme de Sam Mendes. Não precisamos nos identificar com as discussões dos personagens em si, mas sim com o fato de que o sonho de viver intensamente a vida esvaiu-se. A partir daí perdeu-se a esperança e sem esperança não há vida.

A grande maioria no Brasil não teve acesso ao livro de Richard Yates, que provavelmente venderá mais exemplares graças ao filme e à polêmica citada no artigo de Davidson, portanto o primeiro contato com a história do casal Wheeler se deu através do filme. Ao ser analisado livre desse pré-conceito, o filme destaca-se como um dos melhores que já vi nos últimos tempos.

Em sua desiludida e terrível abordagem da sociedade norte-americana dos anos 1950 Sam Mendes cria uma obra-prima. Não romântico e meloso como muitos gostariam, mas cruel e verdadeiro como não suportamos encarar. Talvez por isso o filme incomodou mais do que agradou.

Aqueles que não sabem perceber a qualidade de um filme independentemente do fato de seu final ser feliz ou não estão perdendo a oportunidade de apreciar um bom cinema.

É preciso compreender que filmes, e a arte em geral, não devem ser apenas reflexos daquilo que gostamos e que nos faz sentir bem. O filme bom é aquele que mexe conosco, positiva ou negativamente, que de uma forma ou de outra nos faz pensar.

Quem nunca se sentiu amarrado pelas hipocrisias sociais que atire a primeira pedra. “Foi apenas um sonho”, título em português do filme, de certa forma entrega a história. Talvez esse nome tenha sido dado com intuito de preparar espectadores desavisados que vão ao cinema apenas para ver “Jack e Rose” juntos novamente. De qualquer forma a sutileza amarga do título original do filme “Revolutionary Road” não trás apenas o nome da rua do subúrbio em que moram os protagonistas. Ele traz a hipocrisia em si, ao chamar de revolucionária uma rua, e toda uma sociedade, que é exatamente o contrário.

Recentemente assisti a um documentário sobre os anos 1950 em que afirmava-se que nada realmente bom aconteceu nesse período nos Estados Unidos, mesmo que se tenha lembranças românticas sobre ele. A repressão era enorme e a necessidade de conter o comportamento das massas com filmes e propagandas que pregavam o American Way of Life escondiam o “buraco desesperançoso” em que essas pessoas viviam. Elas tentavam aparentar ser sempre felizes e se enquadrar nos padrões fantasiosos, mas inviáveis, vendidos pela mídia.

Daí vêm os filmes de Doris Day e Sandra Dee que ensinavam como ser uma boa dona-de-casa. A “revolução” do período em si foi marcada pelas invenções que facilitariam a vida da dona-de-casa, como a máquina de lavar. Toda repressão e falta de liberdade de expressão, principalmente das mulheres, colaborou para criar uma geração completamente desnorteada e sem senso da própria vida e dos próprios sentimentos.

No filme um jovem casal promissor, de idéias ousadas e sonhos a serem realizados, sem perceber, acaba caindo na armadilha da sociedade norte-americana: casar-se, ter filhos, trabalhar em um emprego que não se gosta e morar no subúrbio. Os padrões estabelecidos por seus pais acaba sendo repetido por eles. Acabam ficando amargos um com o outro e com a vida. Eternamente insatisfeitos, em busca de prazeres momentâneos que possam tampar, mesmo que temporariamente, o enorme “buraco desesperançoso” em que se encontram.

April e Frank Wheeler (interpretados por Kate Winslet e Leonardo DiCaprio) vêem a luz no fim do túnel e percebem os problemas e as consequências de sua vida vazia. A solução por eles encontrada é mudar para Paris. A cidade luz representa a oportunidade de um recomeço, livre das formas de conduta pasteurizadas típicos da sociedade norte-americana. No fundo, como diz a personagem de Kate Winslet não precisa ser Paris, pode ser qualquer outro lugar. O importante é fugir da armadilha e começar a viver.

Todos parecem sedados e incapazes de mudar o rumo de sua própria vida e quando o jovem casal Wheeler decide sair desse ciclo vicioso, a estrutura é abalada.

A figura mais interessante e autêntica do filme é John Givings, PhD em Matemática, que depois de vários tratamentos de choque passa sua vida entre internações psquiátricas e a casa da mãe Helen Givings, interpretada por uma surpreendente Kathy Bates. John, assim como os Wheeler, também viu a luz no fim do túnel, mas ele não conseguiu escapar. De qualquer forma, o estigma de “doente mental” lhe dá a liberdade de falar as mais puras verdades. Ele é a figura mais íntegra do filme e possui um “terceiro olho” que lhe permite ver a covardia e a verdade naqueles que o cercam. Ele rechaça a covardia e celebra a verdade, acreditando que esse casal tem a oportunidade de fugir da hipocrisia reinante.

As brilhantes atuações de Winslet e DiCaprio permitem que o espectador veja ainda uma chama de vida em seus personagens e essa chama vai apagando-se a medida que o sonho de uma nova vida vai se distanciando. Frank acaba conseguindo se readaptar, por medo de conhecer a si mesmo. April não.


O que fica: uma célebre frase de Goethe “Se você pensa que pode, ou sonha que pode, comece. Ousadia tem poder, genialidade e mágica. Ouse fazer e o poder lhe será dado”.