sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Os náufragos da louca esperança, uma criação coletiva do Théâtre du Soleil

Descobrir o Théâtre du Soleil foi uma experiência única e inesquecível.
Ao chegar no SESC Belenzinho em São Paulo, fomos surpreendidos por uma fila enorme de "sem ingressos". Não era o nosso caso e assim nos direcionamos para a tenda do espetáculo.
Ao entrar, a primeira emoção é passar pelos camarins, estrategicamente posicionados em nosso caminho. Através de cortinas de rendas cedemos ao nosso lado voyeur ao ver os atores, em trajes de época, se arrumando e se maquiando para o espetáculo. Tudo isso surpreende e ajuda a entrar no clima. É irresistível olhar para eles, uma viagem no tempo regada ao som da trilha de Jean-Jacques Lemêtre.
Ao chegar na platéia somos surpreendidos por uma enorme arquibancada, que apesar de devidamente acolchoada nos faz temer as 4horas de espetáculo que se seguirão. Lugares encontrados, aguardamos ansiosos o início do espetáculo. As 19h pontualmente Ariane Mnouchkine, diretora do grupo, vem a frente para falar com o público. Sua simpatia e grande coração me fazem emocionar pela segunda vez. 
Em seu discurso ela explica que lá fora existe uma enorme fila da "esperança", e por esse motivo ela pede para nos juntarmos um pouco mais uns aos outros para assim dar lugar aos "náufragos da esperança". Como o espetáculo ficará em cartaz apenas por  mais alguns dias seria gentil salvarmos essas almas perdidas. Aí tem início uma verdadeira missão de resgate. Atores da trupe ajudam a direcionar os náufragos a seus lugares. Todos saltam um pouquinho mais para o lado na esperança de conseguir espaço suficiente para abrigar mais alguns. 
Esse simples gesto para ajudar o próximo e toda a movimentação gerada no público renovou minhas esperanças na humanidade. A cada pessoa que entrava correndo, meio perdida, rindo de felicidade por ter conseguido estar ali, era mais um náufrago salvo. Naquela noite, fico feliz em dizer, que todos os náufragos foram salvos.
Cortina baixada, alegria no coração e expectativa para o início do espetáculo. As cortinas se abrem e um palco imenso é revelado. Ainda no escuro a história é contextualizada com a visita de uma parente dos protagonistas redescobrindo em um velho sótão suas obras. No acender das luzes voltamos no tempo e pessoas começam a correr de um lado para o outro. Seguram cordas, arrastam cenários, tudo num corre-corre que deixa o espectador sem saber ao certo para onde olhar. A magia começa. Como crianças encantadas nossa curiosidade é aguçada. Para que tudo isso? Porque eles tanto correm? O que estão aprontando?
Conforme afirmou Danilo Santos de Miranda, Diretor do SESC-SP, "Composto por duas narrativas paralelas, Os náufragos da louca esperança (Auroras) apresenta, inicialmente, momentos anteriores à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, quando pessoas fascinadas pelo cinema reuniam-se na guinguette Fol Espoir, onde desejavam filmar a ficção criada por Júlio Verne [Os náufragos do Jonathan -  Júlio Verne - final do século XIX]."
Obviamente palavras não são suficientes para descrever o espetáculo que se seguiu. Assistir a uma peça de teatro relacionada ao primeiro cinema, foi para mim uma das experiências mais marcantes que já vivenciei. O espaço cênico, a movimentação dos atores tudo funcionava como partes de uma engrenagem em caótica harmonia. A ideia de coletividade e de sociedade igualitária eram expressas em cada gesto. Todos por um bem comum. Tudo em nome do entretenimento de qualidade. Todos a serviço do encantamento do espectador.
Efeitos especiais físicos e soluções criativas para inovar com a "nova tecnologia" do cinema não faltaram no filme dentro da peça. Tramas paralelas pontuando momentos históricos. Enquanto nós, dentro daquele sótão, presenciávamos a criação de mundos novos. Navios surgiam e naufragavam. Carruagens em fuga no meio da noite. Casas que viravam do avesso. A intensidade, a alegria e a união dos atores é algo que se sente no ar. Situações absurdas, muito riso e emoção marcaram essas 4 horas. O universo criado por Ariane Mnouchkine é algo que nos faz desejar fazer parte, como um sonho bom que não se quer acordar.
Ao final, com lágrimas nos olhos, tive a certeza de ter visto um dos mais belos espetáculos. Só agora percebo que era uma náufraga, perdida num mar de entretenimento fútil, mas fui salva a tempo para perceber que tudo aquilo que sempre acreditei não só é possível, mas existe e está sendo feito pelo Théâtre du Soleil. Eis a Aurora. Intenso, emocionante, o mais humano e comunista dos espetáculos. Comunista no sentido mais utópico de seus sentidos, que assim o deixa de ser para tornar o sonho real no palco do Théâtre du Soleil.
Obrigada ao Serge Borg e Joël Girard por me proporcionarem tão maravilhosa descoberta.

Assim queridos amigos, tudo que posso dizer-lhes é que se tiverem uma chance na vida de assistir a um espetáculo do Théâtre du Soleil não a percam. É entretenimento do mais alto nível. O teatro como deveria ser... sonho tornado realidade.

Para conhecer o Théâtre du Soleil
Fundado em 1964, o Théâtre du Soleil permanece ligado a ideia "grupo de teatro". Ariane Mnouchkine estabelece a ética do grupo sobre regras elementares: os profissionais formam um todo só, todos recebem um mesmo salário e o conjunto da companhia se envolve no funcionamento do teatro (manutenção diária, acolhimento do público no momento do espetáculo). O Théâtre du Soleil é um dos últimos grupos de teatro a funcionar como tal hoje na Europa.
http://www.theatre-du-soleil.fr

Fotos da construção do palco do espetáculo no SESC Belenzinho: http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-actualites,5/la-tournee,362/sao-paulo-du-5-au-23-octobre-2011,1338

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