quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Angel Eyes, O Mau


Às vezes, nos deparamos com títulos e nomes de personagens que são uma síntese perfeita de seu espírito - só por isso mereciam um prêmio. Em O bom, o mau e o feio (Il, Buono, Il Brutto, Il Cattivo - Itália - 1966), chamado no Brasil Três Homens em Conflito, Lee Van Cleef é Angel Eyes, O Mau.

Nos extras do DVD duplo do filme restaurado, ficamos sabendo que os olhos de Lee Van Cleef, penetrantes e absolutamente inconfundíveis, pesaram sobremaneira na escolha do diretor Sérgio Leone. Um diretor cujo estilo dizem ser operístico, marcado por alternâncias radicais de um grande plano geral diretamente para um close up, pela dança de olhares sem fala. Mesmo na tela da televisão, o olhar de Lee Van Cleef é perfurante, atravessa a tela (palavras de Leone); fico imaginando o impacto no cinema, na sala escura, na tela grande...

Obviamente não é só o formato dos olhos e do nariz, Lee Van Cleef amedronta e consegue ser mau só de olhar para dentro ou fora da tela. Ao mesmo tempo, Angel Eyes move-se e age de maneira tão elegante e segura que não dá para deixar de admirá-lo, de sentir fascínio pelo Mal que tem uma lógica, que é elegante e inteligente... tudo que esperamos que o vilão não seja.

Este Mal Fascinante teve sua defesa mais inusitada nos anos 1950. A Disney produziu um programa de TV chamado Disneylândia, exibido nos Estados Unidos de 27 de outubro de 1954 a 04 de fevereiro de 1990. O programa era montado a partir da edição dos filmes produzidos pelo estúdio - que se notabilizara há muito pelo "bom-mocismo", pela infantilização da animação e edulcoração dos contos de fadas. Sem dúvida, meu episódio favorito é o nº 20, da segunda temporada, que foi ao ar no dia 15 de fevereiro de 1956, "Our unsung villains". Os vilões são defendidos ardorosamente pelo espelho da madrasta da Branca de Neve, com o argumento genial de que os vilões é que deveriam ser cultuados, pois eles são quem dão, literalmente, o sangue para entreter o público, para fazer mocinhos e mocinhas parecerem bem. Pura injustiça, pois estes, sim, são de uma crueldade atroz (basta um retrospecto das mortes e punições reservadas aos vilões pelas mãos dos mocinhos).

Logo na seqüência de apresentação de Angel Eyes, descobrimos a lógica d'O Mau. Ele está cumprindo um contrato: Baker quer descobrir o nome que Jackson está usando (homem que escondera o tesouro que desperta a cobiça de Blondie, Angel Eyes e Tuco - O Bom, O Mau e O Feio). Para isto, Angel Eyes confronta e mata um homem em sua mesa de almoço - não sem antes o homem tentar fazer uma contraproposta para que Angel Eyes matasse Baker. No entanto, Angel Eyes explica que ele sempre cumpre seus contratos.

Quando completa o serviço, ele dá ao moribundo Baker a informação, explica que matou o "informante", mas acrescenta que há um problema, ele fora pago para matar Baker: "O chato é que quando me pagam, sempre cumpro minha parte. Você sabe disso." Então, com justiça, ele mata Baker como matara o outro homem. O Mau é ético.

Nesta seqüência fica claro: este é o cara que deve ser temido, com sua frieza, determinação, habilidade e lógica inquebrantável. Para vencê-lo, Blondie e Tuco precisam se unir. Como a grande ameaça, Angel Eyes nem precisa aparecer muito durante a trama, quase toda centrada n'O Bom e O Feio. Para ser temido, a ele, basta um olhar.

O Bom, o Mau, o Feio e Il maestro

O filme que dá título ao nosso blog apresenta três homens em conflito ("coincidentemente" seu título em português) num western que se passa em plena guerra civil norte-americana (apesar de ter sido filmado na Espanha). Os personagens vivem encontros e desencontros em busca de um mesmo objetivo. No caso do filme, uma fortuna em dinheiro. Cada um sabe apenas uma parte do segredo que levará ao local onde o tesouro está enterrado e, por isso, precisam unir forças para encontrá-lo.

Como o Bom, falarei um pouco da trilha sonora composta pelo maestro Ennio Morricone em sua parceria com Sergio Leone. (Tive a honra de assistir ao vivo em São Paulo, neste ano, Morricone conduzindo a orquestra Roma Sinfonietta. Foi emocionante! Chorei de soluçar...)

Com trilhas sonoras inesquecíveis Il maestro, como é chamado Morricone, é um dos poucos compositores que, a pedido do próprio diretor, no caso Sergio Leone, participou desde a pré-produção até à finalização de seus filmes. O que pode explicar o fato de suas músicas ajudarem a expressar os sentimentos dos personagens de uma forma mais tocante que em outros filmes. No filme “The good, the bad and the ugly” (Il, Buono, Il Brutto, Il Cattivo - Itália - 1966) a música é quase um quarto personagem, nos possibilitando perceber emoções indizíveis por seus brutos personagens. O que na literatura está escrito nas entrelinhas, nos filmes de Leone, são as composições marcantes de Morricone. Diferente de muitos outros compositores, ele não tem medo de inovar e faz uso de todo tipo de instrumentos a serviço da melodia que quer criar e seu impacto na história e no espectador. Além disso, ele sabe usar um importante e muitas vezes esquecido elemento musical: o silêncio. O gênero western não foi o mesmo depois de Sergio Leone e Ennio Morricone*. Clint Eastwood também não.

* Importante lembrar que Morricone fez trilhas para os mais diversos gêneros cinematográficos. Em 2007 Il maestro recebeu um Oscar pelo conjunto de sua obra, reconhecimento tardio, mas sem dúvida merecido.